sábado, 3 de outubro de 2009

Olimpíadas Brazil-2016


Esporte



O esporte é a segunda grande diversão, distrai, entretém, brilha intermitente, decepciona, ilude, enfim, é um truque social que atrai a atenção do povo no ocidente. Talvez os leitores pensem que técnica nada tem a ver com esporte. Estão errados. A técnica joga um duplo papel. Em primeiro lugar, no esporte, a técnica transforma sua prática pelo seu rigor. Em segundo, a técnica faz do esporte o espetáculo ideal da televisão e assim o transforma. Mencionaremos simplesmente o primeiro aspecto de passagem, pois seu estudo na sociedade tecnológica não é tão relevante aqui. Os esportistas profissionais estão quebrando constantemente recordes conforme as técnicas melhoram. Enquanto procuram continuamente por resultados melhores, as técnicas se transformam e suas exigências se estendem a todos os aspectos da vida (regimes, etc.). O resultado é profissionalismo. Mas a aplicação maior da técnica no esporte depende do discurso tecnológico. Se a competição fosse simplesmente uma brincadeira, um jogo (como é feito usualmente no esporte), e se fosse simplesmente uma questão individual (como no golfe), não haveria a aplicação de técnicas extremas. O discurso tecnológico transformou o esporte em um gigantesco espetáculo, em campeões fabricados, estrelas, e ídolos do estádio.

A difusão maciça pela mídia e pelo poder da propaganda sobre as massas muda o esporte. O discurso tecnológico o transforma em uma questão nacional e global onde se faz pouco caso de suas regras áureas: honestidade, lealdade, jogo limpo.

Para se ter uma idéia de como o público foi cativado pelo esporte basta apenas considerar o lugar de destaque que ocupa na mídia. Na televisão, em todos os canais, não há um dia sequer que não dedique vários minutos ao esporte. Os jornais permitem-lhe mais espaço. É impressionante como durante todo o ano algo sempre está acontecendo nos esportes a cada dia: futebol, basquete, tênis, fórmula I, onde aparece gente disputando, nadando, correndo, etc.. Cada dia o público tem que ter sua dose de emoção e de paixão. Os campeonatos e os jogos televisionados internacionais. As pesquisas mostram que 50 por cento de todos os televisores ficam ligados em jogos televisionados ao vivo. O que é equivalente a três grandes redes mostrando fa mesma coisa ao mesmo tempo. Na França o preço para o direito de transmissão em 1985 era 500.000 francos (aproximadamente $100.000) por tais jogos podem render anualmente até 3.500, 000. francos ($700.000).

Naturalmente, uma transmissão nesta escala é permeada de propaganda. Os sinais são colocados todos os ambientes. Os anúncios colocaram nos franceses uma paixão pelas marcas patrocinadoras das equipes, e as torcidas carregam as marcas das empresas. Estes logos custam milhões, e naturalmente, anunciar pesado no esporte proporciona cada vez mais retorno. Isso não seria possível se a televisão e o rádio não inculcasse constantemente o esporte na linha de frente de toda a transmissão francesa como algo indispensável.

Alguns jornais provincianos devotam suas primeiras páginas aos eventos, ostentando-os com fotografias coloridas. O jogo do dia é mais importante do que um acordo internacional ou uma tentativa de assassinato. O jogo é a notícia mais importante. Como sempre, há uma ação recíproca, porque a mídia focaliza os eventos esportivos, o que resulta em que mais pessoas se interessem aumentando a demanda. A mídia pode então aumentar a quantidade, a intensidade e a exaltação dos esportes, porque promovem uma demanda pública.

Mas o que acontece com o esporte assim tecnizado e tornado espetáculo? Primeiramente, temos uma transição ao profissionalismo total. O profissionalismo não é coisa nova, mas devido ao forte suporte financeiro torna-se exclusivo. O esporte foi inventado para ser uma brincadeira. As pessoas se envolveriam quando fora do trabalho. Pouco a pouco o profissionalismo ganhou terreno. Hoje o único esporte "verdadeiro" é o profissional. Temos assim um fenômeno duplamente notável. Por um lado os jogadores são comprados. O clube mais rico terá os melhores jogadores. A soma paga para comprá-los chega aos milhões. Muitos clubes entram em débito. Assim eles têm que levantar o dinheiro. Algumas cidades os subsidiam pesadamente devotando muito mais dinheiro a seus clubes do que à prevenção social ou à reabilitação de prisioneiros. Há anúncios constantes visando trazer mais espectadores. Torna-se necessário construir novos estádios e os recursos da cidade são novamente direcionados nesse sentido. O imposto pago por cidadãos que não se interessam por tais coisas é direcionado para pagar essas despesas malucas.

Assim, aqueles que não são fortes nem capazes de praticar hábeis performances não são completamente normais. O profissionalismo torna o perfeccionismo técnico possível. Mas trás também algumas conseqüências sérias. Meninos de quatorze anos sem tais habilidades são treinados excessivamente até oito horas por dia, de modo que aos dezoito possam começar a jogar em público, mas sua carreira se encerra quando se aproxima dos trinta. Não saberão então fazer nada mais, não terão nenhuma outra habilidade, e não serão capazes de qualquer outra coisa. Durante cerca de dez anos de atividade esportiva eles poderão fazer uma fortuna que lhes permita viver sem trabalhar o resto de suas vidas. Tanto para os clubes como para os atletas, o esporte transformou-se em uma questão de dinheiro. Em nome do tecnicismo esportivo, e em nome daqueles que se entregam ao discurso tecnológico, o esporte, bem como os deuses do estádio, todos tornaram-se súditos do rei dinheiro. O socialismo é não melhor, porque está sob as mesmas pressões. Pode haver menos competição financeira entre clubes mas há uma competição mais burocrática!

Outro efeito do mercantilismo profissional pode ser visto na composição das equipes. Na Formula I, em escuderias como a Renault, Fiat, ou Porsche, as equipes podem ser compostas por pessoas de qualquer país: brasileiros, africanos, italianos, portugueses, etc. Originalmente, o time de uma cidade era composto por gente dessa cidade, de tal forma que uma cidade realmente disputava contra outra. Mas o que é que acontece hoje? Simplesmente, o clube ganhador é aquele que contrata os melhores profissionais do mercado pagando mais por eles!

Se no esporte vale tudo, então não haverá nenhuma hesitação em aplicar a mais extrema brutalidade. Em cada partida televisionada que eu vejo, fico cada vez mais impressionado pela brutalidade nas partidas. Vemos isso até mesmo na natação! Isso é mais patente, naturalmente, no boxe, que há muito deixou de ser uma arte para transformar-se em mero desencadear da violência. Vemos isso também no tênis. Ficamos espantados com a pancada da raquete. Parece ferreiros no trabalho. Não é por acaso que os campeões de tênis recebem nomes como "foguete" e "dinamite". Mas onde está o tênis do dia-a-dia com sua graça e leveza? Borotra, Lenglen, e Tilden não jogaram como açougueiros, brandindo suas raquetes como clavas. Essa brutalidade é ligada à violência da competição e também à transmissão para milhões de espectadores, porque a brutalidade é visualmente muito mais lucrativa. Não é por acaso que a brutalidade dos jogadores afeta o público, gerando milhares de fanáticos obsecados, que não são mais esportistas do que eu, mas que por causa das partidas que assistem, acabam finalmente, como vemos repetidas vezes na televisão, super excitados, violentos, e quebrando tudo pelo caminho. Eles simplesmente foram contaminados pelos deuses do estádio e pelo poder televisivo do espetáculo, em que eles próprios repentinamente se tornam os atores.

Acredito que quanto maior a propagação do tecnicismo esportivo, mais quebra-quebra veremos nos estádios, apenas pelo fato de haver conflitos violentos entre grandes rivais, sejam lá quais forem suas cores. Os torcedores mostram-nos o resultado do total fascínio em suas manifestações.

Em contraste com o que escrevi, é bom recordar a maneira como uma sociedade tradicional pôde integrar e controlar o mais violento de todos os esportes, a tourada. Uma luta entre o "bruto" e o homem, que poderia degenerar mais facilmente em bestialidade total. Mas isto não aconteceu. O jogo bárbaro foi ritualizado, de forma que a violência ocorre de forma precisa, onde a brutalidade é substituída por um elegante controle, e o comportamento coletivo é ajustado dentro de um tipo de ética comunal. O que era um massacre transformou-se numa arte nobre. Mas hoje vemos o oposto. Assim, a falha principal da técnica e do discurso tecnológico, que envolve a primazia do sucesso, está no fato de desencadear o fanatismo popular.

O fato do esporte ser agora um espetáculo é patente em todos os níveis. Me vem na mente agora a ridícula gesticulação dos jogadores. Quando mudam o placar, por exemplo, ele caem de joelhos, invocam os céus com gestos exagerados, urram junto com os demais membros da equipe, abraçam e felicitam uns aos outros enquanto a multidão ruge. Aquilo torna-se mais importante que qualquer evento político. Mas gesticulam assim apenas porque há câmeras mostrando-os em milhões dos televisores. Ou seja, todos os jogadores sabem que trata-se de uma exibição, e se comportam de acordo com a absoluta necessidade de divertir o público. É o resultado do princípio: "joguem, joguem, do resto a gente cuida".

Chamo a atenção para outras três conseqüências do discurso tecnológico. Primeiramente, a decepção dos esportes. Temos como um exemplo a celebração do que são chamados "Jogos Olímpicos". Mas os jogos olímpicos reais eram algo completamente diferente. Não eram apenas um evento espetacular; incluíam canto, teatro, leitura de poesia, etc.. Eram também uma ocasião em que as cidades gregas se congregavam, mesmo em tempos de guerra. Durante os jogos havia uma trégua, um cessar fogo, a unidade grega era restaurada, e eu suponho que as conversações diplomáticas aproveitavam da ocasião para resolver problemas. Mas nossos "Jogos Olímpicos" são o oposto disso. São uma ocasião para sanções contra países, para divisões, para expressões de conflito. Alguns países recusam ir ao país que sedia os jogos, e assim por diante. Este ou aquele país é excluído (por exemplo, Irã ou Coréia do Norte). Ou seja os jogos viram uma modalidade de combate. Transformam-se assim em uma grande demonstração da tremenda transformação que o esporte sofreu devido à tecnologização da sociedade (não a sua politização, porque nunca o mundo foi tão político quanto o mundo grego). Os adversários devem ser esmagados a todo o custo. Esta é a cruel e corrupta lei da técnica e agora também do esporte, esse esporte tornou-se parte da trágica mística do público expectador e que é exaltado por toda a mídia, que cobre figurões esportistas com honras antes reservadas a generais, e glória nunca antes vista, de modo que os jogos claramente não são mais vistos como jogos mas como competições mortais, encontro cruéis, uma verdadeira batalha maniqueísta. Nossos Jogos Olímpicos hoje, portanto, não são jogos olímpicos reais de paz e de diálogo mas jogos de feroz rivalidade. Esta é a lei da técnica e também do esporte moderno. O discurso tecnológico exalta o poder do esporte, que é o poder de um país como um todo. O esporte é tão importante que o presidente de França tem que adiar um discurso para permitir que os cidadãos prestem atenção ao campeonato europeu na tela da televisão!

Um segundo efeito é que a importância do esporte é tão dominante que um evento esportivo é transmitido quando não há nada para exibir na programação diária. Não há um único dia em que o público passe sem shows e espetáculos. Monstruosidades são criadas, como o rally de Paris a Dacar, por exemplo, um desperdício absurdo e um insulto a países onde a fome é abundante, exibindo o poder ocidental diante da pobreza do terceiro mundo, um exemplo de completa vaidade. Não me entenda mal; Eu não estou contestando a coragem, a resistência, a habilidade, ou a energia dos participantes. O que eu destaco é que em um mundo em que a coragem, a inteligência e a resistência podem ser mostradas em milhares de maneiras adequadas, é totalmente absurdo e mesmo odioso desperdiçar tais qualidades em coisas assim tão imbecis. Por que estes desbravadores tão cheios de energia não trabalharam em prol do terceiro mundo, transportando necessárias provisões ao coração de África em rotas tão difíceis quanto as de Dacar? Por que não navegam em navios do Greenpeace? Ano passado um repórter de televisão que cobria o rally com a missão importante de emitir imagens para milhões de telespectadores foi morto em um helicóptero tornando-se assim o foco das atenções com um enfoque heróico. A única coisa sadia foi dita por Cavanna sob o título: "morreu como um idiota para o Paris-Dacar".

Finalmente, um bom artigo sobre a corrida de barcos de Rhum publicado no periódico Réforme destaca como o público mobilizado para este evento (500.060 assistiram à abertura em St. Malo). O texto chamava a atenção ao fato de que este esporte é realmente uma proeza no campo da publicidade com os patrocinadores arcando com as despesas dos barcos, e com uma enorme pesquisa técnica para melhorar seu desempenho (como no caso dos carros da fórmula I, um típico desperdício por parte de uma sociedade com pesados distúrbios econômicos), e a técnica que ocupa um lugar proeminente na corrida com satélites e computadores é usada para certificar-se de que todos os telespectadores não deixem de acompanhar o mais ligeiro incidente. Este é um bom exemplo de sublimes meios usados para alcançar ridículos resultados, o esporte é uma brincadeira sem nenhuma particular importância fora de seu contexto. Mas porque este artigo excelente recebeu o título: "tecnologia a serviço da fantasia"? Vale a pena analisar este título. A "tecnologia" não está a serviço de tudo. Dominou, despertou e impôs sua própria fantasia. Neste ponto estamos com Castoriadis (L'Institution imaginaire de la société). Na medida quem que a fantasia se isntitucionaliza, ela hipnotiza, fascina, diverte, e vicia através do espetáculo, esvaziando todo o significado que lhe é próprio, roubando sua finalidade, desprovendo seu valor, não criando nada, sendo algo puramente passivo, alimentado como mercadoria, e a sociedade como um todo não obtêm outro resultado a não ser a poeira e a fumaça que se dispersa tão rapidamente quanto a imagem emocionante mas insignificante do esporte. Enfim, é de pouca importância o fato de que o esporte se transformou em um instrumento do grande capital. "Necessitamos expor e denunciar a mitologia mistificadora do esporte, que, para o benefício de grandes investidores se transformou em um travesti das brincadeiras de circo".

Carece também de grande importância o fato do esporte ser controlado pelo estado, cimentado pela ideologia da classe média, e governado por relações de produção, vocacionado como sub estrutura capitalista. Esta crítica cheirando a dogmatismo esquerdista, embora tenha o mérito de destruir o papo idealistico e humanístico sobre os virtudes do esporte, comete o erro de confiar em análises da sociedade de 1900. Os grandes investidores de hoje, que têm certamente uma influência decisiva, não são mais tão radicais quanto à técnica, o mesmo ocorreu nos falecidos países socialistas. O fator dominante no esporte é agora o discurso tecnológico, a droga indispensável da mídia ocidental, o esporte tornou-se meramente uma ferramenta de ganhar mais dinheiro. E o esporte tem que curvar-se às necessidades deste discurso, tem que submeter-se aos imperativos dos grandes investidores, que lucram por ele, o mesmo ocorreu nos falecidos estados socialistas!

Traduzido e adaptado do livro “Le bluff technologique” de Jacques Ellul,

por Railton de Sousa Guedes

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