segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Leninismo e Ultra-esquerda



Introdução

O inestimável mérito da esquerda comunista alemã e de muitos grupelhos ultra-esquerdistas foi enfatizar a primazia da espontaneidade proletária. As potencialidades do comunismo estão na experiência proletária, não fora dela. A ultra-esquerda portanto apelou consistentemente para a essência do proletariado no combate às formas equivocadas de sua existência. Dos anos 20 aos 70, ela se firmou contra todas as mediações: o Estado, partidos e sindicatos, inclusive grupelhos e sindicatos anarquistas. Se Lênin pode ser resumido na palavra "partido", uma frase pode definir a ultra-esquerda: "os proletários por si mesmos"... Muito bem, mas a questão permanece: o que significa o "por si mesmo" dos proletários?

Essa questão deve ser tanto mais enfrentada porque, desde o comunismo de conselhos e passando pela Internacional Situacionista, tem sido cada vez mais influente.

A versão francesa deste texto surgiu de um grupo com raízes ultra-esquerdistas, mas que veio a questioná-las. Um primeiro esboço foi submetido a uma convenção organizada pela ICO (Informations et Correspondances Ouvrières), acontecida perto de Paris, em junho de 1969 [1]. A versão ampliada, em inglês, tinha como finalidade iniciar uma discussão com Paul Mattick.

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O que é a ultra-esquerda? É um produto e um dos aspectos do movimento revolucionário, subseqüente à primeira guerra mundial e que sacudiu a Europa capitalista sem destruí-la entre 1917 e 1921. As idéias da ultra-esquerda se originam naquele movimento dos anos 20 que foi a expressão de centenas de milhares de proletários revolucionários na Europa. Este movimento, que permaneceu minoritário, contrapôs-se à linha geral da Internacional Comunista para o movimento comunista internacional. Havia a direita (os social-patriotas, Noske...), o centro (Kautsky...), a esquerda (Lênin e a Internacional Comunista) e a ultra-esquerda. A ultra-esquerda era fundamentalmente uma oposição: uma oposição dentro e contra o Partido Comunista Alemão (K.P.D), dentro e contra a Internacional Comunista. Ela se afirmou criticando a ideologia predominante no movimento comunista, isto é: o leninismo.

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A ultra-esquerda estava longe de ser um movimento monolítico. Além disso, seus diversos componentes modificaram suas concepções. Por exemplo, a carta aberta de Gorter para Lênin exprimia uma teoria do partido que a ultra-esquerda não aceita mais. Com relação a dois pontos principais (a "organização" e o conteúdo do socialismo), deveríamos estudar as idéias que a ultra-esquerda reteve durante todo o seu desenvolvimento. O grupo francês ICO é o melhor exemplo de um grupo ultra-esquerdista atual.
A) O Problema da Organização

As idéias da ultra-esquerda resultam de uma experiência prática (principalmente, as lutas proletárias na Alemanha) e de uma crítica teórica (a crítica do leninismo). Para Lênin, o problema revolucionário fundamental era forjar uma "direção" capaz de levar os proletários à vitória. Quando os ultra-esquerdistas estudaram o surgimento das organizações de fábrica na Alemanha, concluíram que o proletariado não necessita de partido para fazer a revolução. Esta seria feita pelas massas auto-organizadas em conselhos operários e não "teleguiadas" por revolucionários profissionais. O Partido Comunista Operário Alemão (K.A.P.D.), cuja atividade é sintetizada teoricamente por Gorter na sua "Resposta a Lênin", considerava-se uma vanguarda cuja tarefa era conscientizar as massas sem dirigi-las, ao contrário do que prega a doutrina leninista. Esta doutrina foi rejeitada por muitos ultra-esquerdistas, que se opuseram à dupla existência das organizações de fábrica e do partido: os revolucionários não devem se organizar num corpo separado das massas. Esta discussão levou à criação, em 1920, da A.A.U.D.-E. (União Geral dos Operários da Alemanha - Organização Unitária), que criticava a A.A.U.D. (União Geral dos Operários da Alemanha) por ser controlada pelo K.A.P.D. (Partido Comunista Operário Alemão). A maioria do movimento de ultra-esquerda adotou o ponto de vista da A.A.U.D.-E. Na França, a atual atividade da I.C.O. se baseia no mesmo princípio: qualquer organização revolucionária que, coexistindo com órgãos criados pelos próprios operários, procure elaborar uma linha política e teórica coerente, acabará tentando dirigir os operários. Portanto, os revolucionários não se organizam fora dos órgãos "espontaneamente" criados pelos operários: eles apenas trocam e divulgam informações e estabelecem contatos com outros revolucionários; jamais tentam definir uma teoria geral ou estratégia.

Para compreender esta concepção, devemos voltar ao leninismo. A teoria leninista do partido se baseia numa distinção que pode ser encontrada em todos os grandes pensadores socialistas do período: o "movimento operário" e o "socialismo" (as idéias revolucionárias, a doutrina, o socialismo científico, o marxismo etc. - ele pode ter muitos nomes diferentes) são duas coisas fundamentalmente diferentes e separadas. Por um lado, há os proletários e suas lutas cotidianas, e, por outro, os revolucionários. Lênin afirma que as idéias revolucionárias devem ser "introduzidas" no proletariado. O movimento operário e o movimento revolucionário são diferentes: devem ser unidos pela direção dos revolucionários sobre os operários. Portanto, os revolucionários devem ser organizados e agir sobre o proletariado "de fora". A análise de Lênin, situando os revolucionários fora do movimento proletário, baseia-se na suposição de que os revolucionários vivem num mundo totalmente diferente dos proletários. Lênin não percebe que isto é uma ilusão. A análise de Marx e seu socialismo científico como um todo não são produtos de "intelectuais burgueses", mas da luta de classes em todos os níveis no capitalismo. O "socialismo" é a expressão da luta do proletariado. Ele foi conceitualmente elaborado por "intelectuais burgueses" (e por proletários altamente educados: J. Dietzgen) porque, até então, somente os revolucionários de origem burguesa podiam fazê-lo, mas foi o produto da luta de classes.

O movimento revolucionário, a dinâmica que leva ao comunismo, resulta do capitalismo. Examinemos a concepção de partido de Marx. A palavra partido aparece freqüentemente nos escritos de Marx. Devemos distinguir entre os princípios de Marx sobre esta questão e sua análise de muitos aspectos do movimento proletário de sua época. Muitas delas foram errôneas (por exemplo, sua concepção do futuro do sindicalismo). Além disso, não se dispõe de nenhum texto no qual Marx tenha resumido suas idéias sobre o partido, mas de diversas notas esparsas e comentários. Todavia, um ponto de vista geral surge em todos esses textos. A sociedade capitalista enquanto tal produz um partido comunista, que nada mais é do que a organização do movimento objetivo (isto implica que a concepção, de Kautsky e Lênin, de uma "consciência socialista" que pode ser "levada" aos proletários não faz sentido) que impulsiona a sociedade para o comunismo. Lênin, revelando total incompreensão da luta de classes, viu um proletariado reformista e afirmou que a "consciência socialista" deveria ser introduzida para torná-lo revolucionário. Num período não-revolucionário, o proletariado não pode mudar as relações de produção capitalistas. Assim, ele procura mudar as relações de distribuição, reivindicando salários mais altos. Evidentemente, os proletários não "sabem" que estão mudando as relações de distribuição quando exigem aumentos salariais. Eles já tentam, "inconscientemente", agir sobre o sistema capitalista. Kautsky e Lênin não percebem o processo, o movimento revolucionário que surge no capitalismo; só percebem um aspecto dele. A teoria kautskiana-leninista da consciência de classe ignora o processo e só considera um de seus momentos transitórios: aquele em que o proletariado, "só com seus próprios recursos", não pode ser senão reformista, enquanto os revolucionários ficam fora do movimento operário. Na realidade, os revolucionários, suas idéias e teorias se originam nas lutas proletárias.

Num período não revolucionário, os proletários revolucionários, isolados em cada fábrica, tentam expor a natureza real do capitalismo e das instituições que o sustentam (sindicatos, partidos "operários"). Em geral, fazem isto com pouco êxito, o que é normal. E há também revolucionários, proletários e não-proletários, que lêem e escrevem, esforçando-se para fornecer uma crítica de todo o sistema. Esta divisão é produzida pelo capitalismo: uma das características da sociedade capitalista é a divisão entre trabalho intelectual e manual. Esta divisão, que existe em toda a sociedade, também existe no movimento revolucionário. Seria idealista esperar que o movimento revolucionário seja "puro", não fosse ele um produto desta sociedade.

Somente o êxito completo da revolução pode destruir essa divisão. Enquanto isso não ocorre, devemos lutar contra ela, em nosso movimento, enquanto característica do resto da sociedade. É um fato que muitos revolucionários não sejam inclinados à leitura, nem à teoria. Porém, é um fato transitório: os "proletários revolucionários" e os "teóricos revolucionários" são dois aspectos do mesmo processo. É um erro dizer que os "teóricos" devem guiar os "proletários". Mas é igualmente errado dizer, como a I.C.O., que a teoria coletivamente organizada é perigosa porque resultará numa direção sobre os operários. A I.C.O. toma uma posição simétrica à de Lênin. O processo revolucionário é um processo orgânico e, embora seus momentos estejam separados por um certo tempo, a emergência de qualquer situação revolucionária (ou mesmo pseudo-revolucionária) revela a profunda unidade dos vários elementos do movimento revolucionário.

O que ocorreu em maio de 1968, nos comitês operário-estudantis de ação no centro de Censier, em Paris? Alguns comunistas (ultra-esquerda) que antes desses eventos se dedicavam mais à teoria, atuaram com uma minoria de operários revolucionários. Antes de maio de 1968 (e desde então), não estavam mais separados dos operários do que cada operário dos outros numa situação "normal", não revolucionária, na sociedade capitalista. Marx não estava separado dos proletários quando escreveu O Capital, nem quando atuou na Liga dos Comunistas ou na Internacional. Enquanto atuava nessas organizações, ele não sentiu a necessidade (como Lênin), nem o temor (como a I.C.O) de se tornar um líder dos proletários.

A concepção de Marx - do partido como produto histórico da sociedade capitalista que assume diversas formas de acordo com o estágio e a evolução desta sociedade - nos capacita a superar o dilema: necessidade do partido / temor do partido. O partido comunista é a organização espontânea (ou seja, totalmente determinada pela evolução social) do movimento revolucionário criado pelo capitalismo. O partido é um produto espontâneo, nascido no terreno histórico da moderna sociedade. Tanto o desejo quanto o medo de "criar" o partido são ilusões. Ele não pode ser (ou não) criado: é um simples produto histórico. Por isto, os revolucionários não precisam nem construí-lo nem temer construí-lo.

Lênin tinha uma teoria do partido. Marx tinha outra, completamente diversa. A teoria de Lênin foi um dos elementos da derrota da revolução russa. A ultra-esquerda rejeitou todas as teorias do partido como perigosas e contra-revolucionárias. A teoria de Lênin não foi a causa da derrota da revolução russa. A teoria de Lênin só predominou porque a revolução russa fracassou (principalmente, devido a ausência da revolução no ocidente). Não devemos descartar todas as teorias do partido porque uma delas (a de Lênin) foi um instrumento contra-revolucionário. Infelizmente, a ultra-esquerda meramente adotou a concepção que é o exato contrário da de Lênin. Lênin queria construir um partido; a ultra-esquerda se recusa a construí-lo. A ultra-esquerda, assim, dá uma resposta diferente à mesma questão falsa: pró ou contra a construção do partido. A ultra-esquerda permaneceu no mesmo campo de Lênin. Nós, pelo contrário, não queremos meramente inverter o ponto de vista de Lênin; queremos abandoná-lo completamente.

Os grupos leninistas atuais (trotskistas, por exemplo) querem dirigir os operários. Os grupos de ultra-esquerda (a I.C.O., por exemplo) divulgam informação sem definir sua posição sobre os problemas. Divergimos de ambos, quando afirmamos ser necessária uma crítica teórica da sociedade atual que implique uma atividade coletiva, e que um grupo permanente de proletários revolucionários deve ser capaz de elaborar uma base teórica para sua ação. A elucidação teórica é condição necessária e elemento da unificação prática.

B) Gerindo o que?

A revolução russa morreu porque acabou desenvolvendo o capitalismo na Rússia. Formar um corpo eficiente de gestores se tornou sua meta. A ultra-esquerda logo concluiu que a gestão burocrática não é o socialismo e passou a defender a gestão operária. E uma teoria coerente foi criada, com os conselhos operários no centro, atuando como órgãos de combate dos proletários sob o capitalismo e como instrumento da gestão operária sob o socialismo. Assim, os conselhos têm um papel central na teoria da ultra-esquerda da mesma maneira que o partido na teoria leninista.

A teoria da gestão operária analisa o capitalismo em termos de gestão. Mas o capitalismo é, sobretudo, um modo de gestão? A análise revolucionária do capitalismo iniciada por Marx não salienta esta questão: quem gere o capital? Pelo contrário, Marx descreve tanto os capitalistas quanto os operários como meras funções do capital: "o capitalista enquanto tal é somente uma função do capital; o trabalhador, uma função da força de trabalho." Os líderes russos não "conduzem" a economia; são conduzidos por ela. O desenvolvimento da economia russa obedece às leis objetivas da acumulação capitalista. Em outras palavras, quem gere está à serviço de relações de produção definidas, que o compelem. O capitalismo não é um modo de GESTÃO, mas um modo de PRODUÇÃO baseado em RELAÇÕES DE PRODUÇÃO. A revolução visa a subverter radicalmente estas relações. A crítica revolucionária do capitalismo enfatiza o papel do capital, cujas leis objetivas são obedecidas pelos gestores da economia, tanto na Rússia quanto na América.

C) A Lei do Valor

O capitalismo se baseia na troca: inicialmente, apresenta-se como "uma imensa acumulação de mercadorias". Embora não possa existir sem a troca, o capitalismo não é apenas a produção de mercadorias; ele cresce e se desenvolve superando a produção simples de mercadorias. O capital é baseado fundamentalmente num tipo particular de troca, a troca entre trabalho vivo e trabalho acumulado. A diferença entre Marx e os economistas clássicos consiste principalmente na criação do conceito de força de trabalho: este conceito revela o segredo da mais-valia, ao diferenciar trabalho necessário e sobretrabalho.

Como as mercadorias se comparam entre si? Através de que mecanismo pode-se determinar que uma quantidade x de A tem o mesmo valor que uma quantidade y de B? Marx não encontra explicação para xA = yB na natureza concreta de A e B, nas suas respectivas qualidades, mas numa relação quantitativa: A e B podem ser trocados na proporção xA = yB porque ambos contém uma quantidade de "algo comum". Se abstrairmos a natureza útil e concreta de A e B, eles mantém somente uma coisa em comum: são "produtos do trabalho". A e B são trocados em proporções determinadas pelas respectivas quantidades de trabalho cristalizadas neles. A quantidade de trabalho é medida pela sua duração. O conceito de tempo de trabalho socialmente necessário, desenvolvido no aprofundamento da análise, é uma abstração: não se pode calcular o que uma hora de trabalho socialmente necessário representa numa dada sociedade. A distinção entre trabalho concreto e abstrato permite a Marx compreender o mecanismo da troca e analisar uma forma particular de troca: o sistema salarial.

"Os melhores pontos do meu livro são: 1) o duplo caráter do trabalho, conforme ele é expresso em valor de uso ou valor de troca. (toda a compreensão dos fatos depende disso.) Isto é enfatizado imediatamente, no primeiro capítulo..." [2]

O tempo de trabalho, de fato, determina toda a organização social da produção e da distribuição. Regula as proporções em que as forças produtivas são usadas para propósitos específicos em locais específicos. A lei do valor "se afirma ao determinar as proporções de trabalho social, não no sentido geral de que se aplicaria a todas as sociedades, mas somente no sentido exigido pela sociedade capitalista; em outras palavras, estabelece uma distribuição proporcional de todo trabalho social de acordo com as necessidades específicas da produção capitalista". [3]

Esta é uma das razões por que o capital não é investido numa fábrica na Índia, mesmo que a produção dessa fábrica seja necessária para a sobrevivência da população. O capital sempre vai aonde pode se multiplicar com maior rapidez. A regulação pelo tempo de trabalho obriga a sociedade capitalista a desenvolver determinada produção somente onde o tempo de trabalho socialmente necessário para essa produção é no máximo igual ao tempo de trabalho médio.

Eis a lógica do capital: valor de troca determinado pelo tempo de trabalho médio.

D) A Contradição do Tempo de Trabalho

Mencionamos o papel central que o sobretrabalho tem na produção da mais-valia. Marx ressaltou a origem, a função e o limite do sobretrabalho: "... Somente quando um certo grau de produtividade foi alcançado - de maneira que uma parte do tempo de produção é suficiente para a produção imediata -, uma parte cada vez maior pode ser aplicada à produção de meios de produção. Isso requer que a sociedade seja capaz de esperar; que uma grande parte da riqueza já criada seja retirada tanto do consumo imediato quanto da produção para o consumo imediato, para empregar esta parte do trabalho que não é imediatamente produtivo (dentro do próprio processo material de produção)." [4]

O trabalho assalariado é o meio de desenvolvimento das forças produtivas.

"A economia real consiste em reduzir ao mínimo o tempo de trabalho e os custos de produção; mas esta redução [é] idêntica ao desenvolvimento da força produtiva." [5]

O trabalho assalariado possibilita a produção de mais-valia através da apropriação do sobretrabalho pelo capital. Neste sentido, a condição miserável do trabalhador é uma necessidade histórica. O proletário deve ser forçado a vender sua força de trabalho. É assim que as forças produtivas se desenvolvem e incrementam a parte de sobretrabalho na jornada de trabalho: o capital cria "uma grande quantidade de tempo disponível... (isto é, a possibilidade para o desenvolvimento das forças produtivas dos indivíduos e, portanto, da sociedade)." [6]

A "existência antitética" [7] ou contraditória do sobretrabalho é bastante clara:

- ele cria a "riqueza das nações";

- ele leva à miséria os proletários que o fornecem.

O capital "é portanto, apesar de si mesmo, instrumental na criação de tempo social disponível, reduzindo o tempo de trabalho de toda a sociedade a um mínimo e, conseqüentemente, liberando tempo para o desenvolvimento de todos." [8]

No comunismo, o excedente de tempo em relação ao tempo de trabalho necessário perderá o caráter de sobretrabalho que os limites históricos das forças produtivas lhe foram conferidos sob o capitalismo. O tempo disponível não será mais baseado na pobreza do trabalhador. Não haverá necessidade de utilizar miséria para criar riqueza. Quando a relação entre trabalho necessário e sobretrabalho for superada pela acréscimo das forças produtivas, o excedente de tempo além do trabalho necessário para a existência material perderá a forma de sobretrabalho.

"O tempo livre - que é tanto ócio quanto atividade - transforma naturalmente seu possuidor num sujeito diferente, que então entra no processo de produção direto como um sujeito diferente." [9]

A economia de tempo de trabalho é uma absoluta necessidade para o desenvolvimento da humanidade. Ela fundamenta a possibilidade do capitalismo e, num estágio mais avançado, a do comunismo. O mesmo movimento desenvolve o capitalismo e torna o comunismo simultaneamente necessário e possível.

A lei do valor e a medição pelo tempo de trabalho médio estão envolvidos no mesmo processo. A lei do valor exprime o limite do capitalismo e tem um papel necessário. Enquanto as forças produtivas ainda não são suficientemente desenvolvidas e o trabalho imediato permanece o fator essencial da produção, a medição pelo tempo de trabalho médio é uma necessidade absoluta. Mas, com o desenvolvimento do capital, especialmente do capital fixo, "a criação da riqueza real passa a depender menos do tempo de trabalho e da quantidade de tempo empregado do que da potência dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, potência cuja 'poderosa eficácia', enquanto tal, perde toda relação com o tempo de trabalho imediato gasto na sua produção, dependendo mais do estado geral da ciência e da tecnologia, ou da aplicação desta ciência à produção." [10]

A miséria do proletariado foi a condição para um crescimento considerável do capital fixo, no qual todo o conhecimento científico e técnico é "fixado". A automação, cujos efeitos agora estamos começando a ver, é porém um estágio desse desenvolvimento. O capital ainda continua funcionando através da medição do tempo de trabalho médio.

"O próprio capital é uma contradição em processo: pressiona para minimizar o tempo de trabalho, mas, por outro lado, usa o tempo de trabalho como única medida e fonte de riqueza. Portanto, ele diminui o tempo de trabalho na forma necessária ao mesmo tempo que o aumenta na forma supérflua." [11]

A bem conhecida contradição entre forças produtivas e relações de produção não pode ser compreendida se não observarmos a ligação entre as seguintes oposições:

a) contradição entre a função do tempo de trabalho médio como regulador das forças produtivas "subdesenvolvidas", e o crescimento das forças produtivas que tendem a destruir a necessidade de tal função.

b) contradição entre a necessidade de desenvolver ao máximo o sobretrabalho do trabalhador a fim de produzir o máximo de mais-valia possível, e o próprio crescimento do sobretrabalho, que torna sua supressão possível.

"Assim que o tempo de trabalho na forma imediata deixa de ser a principal fonte de riqueza, também deixa e deve deixar de ser sua medida, e, por conseqüência, o valor de troca [deve deixar de ser a medida] do valor de uso. O sobretrabalho da massa deixou de ser a condição para o desenvolvimento da riqueza geral, assim como o não-trabalho de alguns poucos deixou de ser a condição do desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano." [12]

A "libertação humana", profetizada pelos pensadores utópicos (do passado e do presente), é então possível: "Com isso, a produção baseada no valor de troca desmorona... O livre desenvolvimento das individualidades, e, portanto, não a redução do trabalho necessário com vistas a aumentar o sobretrabalho, mas a redução geral do trabalho necessário da sociedade a um mínimo, que então corresponde ao desenvolvimento artístico, científico etc. dos indivíduos no tempo livre, e com os meios criados, por e para todos eles." [13]

"Toda criança sabe que se uma nação deixa de trabalhar, não digo um ano, mas mesmo algumas semanas, ela morrerá. Toda criança sabe, também, que as massas de produtos que correspondem às diferentes necessidades exigem massas de trabalho social diferentes e quantitativamente determinadas. Que esta necessidade de distribuição do trabalho social em proporções definidas não pode ser abolida somente mudando a maneira de seu aparecimento, é evidente por si mesmo. Nenhuma lei natural pode ser abolida. O que pode mudar, em circunstâncias historicamente diferentes, é somente a forma em que estas leis se afirmam." [14]

Marx contrapõe, à regulação pelo trabalho socialmente necessário, a regulação pelo tempo disponível. Evidentemente, estes não são dois métodos que se podem escolher ou descartar, mas dois processos históricos objetivos que envolvem todas as relações sociais. São conhecidas as páginas da Crítica do Programa de Gotha nas quais Marx explica que "na sociedade baseada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; tampouco o trabalho empregado nos produtos aparece como valor destes produtos, como uma qualidade material que eles adquiriram, desde então, ao contrário do capitalismo, o trabalho individual já não existe numa modalidade indireta mas diretamente como parte componente do trabalho total." [16]

"A cada um de acordo com suas necessidades", segundo Marx, não significa que "tudo" existirá em abundância; a noção de "abundância" absoluta é um absurdo, historicamente. Terá de haver alguma espécie de cálculo e escolha, não com base no valor de troca, mas no valor de uso, na utilidade social do produto considerado. (Deste modo, o problema dos "países subdesenvolvidos" será visto e tratado de outra maneira.) Marx foi muito claro, na Miséria da Filosofia: "Numa sociedade futura, em que o antagonismo de classe cessará, pois não haverá nenhuma classe, o uso não mais será determinado pelo tempo mínimo de produção; ao contrário, o tempo dedicado à produção de diferentes artigos será determinado pelo grau de sua utilidade social." [16]

Assim, o texto sobre a passagem do "reino da necessidade" para o "reino da liberdade" [17] é elucidado. A liberdade é considerada como uma relação na qual o homem, dominando o processo de produção da vida material, será enfim capaz de adaptar suas aspirações ao nível alcançado pelo desenvolvimento das forças produtivas. [18] O crescimento da riqueza social e o desenvolvimento de cada individualidade coincidem.

"Pois a riqueza real é a potência produtiva de todos os indivíduos. Então, a medida da riqueza não é mais o tempo de trabalho, mas o tempo disponível." [19] Assim, Marx está completamente certo ao descrever o tempo como a dimensão da liberdade humana.

Então, fica claro que a dinâmica analisada por Marx exclui a possibilidade de qualquer via gradual para o comunismo, com a destruição progressiva da lei do valor. Ao contrário, a lei do valor continua se afirmando violentamente até a supressão do capitalismo: a lei do valor nunca cessa de se destruir - mas somente para reaparecer num nível mais alto. Vimos que esse movimento tende a abolir sua necessidade. Mas ele não cessa de existir e de regular o funcionamento do sistema. Uma revolução é, pois, necessária.

A doutrina da autogestão da sociedade pelos conselhos operários não entende a dinâmica do capitalismo. Ela mantém todas as categorias e características do capitalismo: o trabalho assalariado, a lei do valor, a troca. O socialismo que propõe nada mais é do que capitalismo gerido democraticamente pelos trabalhadores. Se fosse posto em prática haveria duas possibilidades: a) os conselhos operários tentariam fazer a empresa funcionar como não-capitalista, o que é impossível enquanto as relações de produção capitalistas ainda existirem. Neste caso, os conselhos operários seriam destruídos pela contra-revolução. As relações de produção não são relações homem-a-homem, mas a combinação de vários elementos do processo de trabalho. A relação "humana" entre dirigentes e dirigidos é apenas uma forma secundária da relação fundamental entre trabalho assalariado e capital; b) os conselhos operários funcionariam como empresas capitalistas. Neste caso, o sistema de conselhos não sobreviveria; se tornaria uma ilusão, uma das diversas formas de associação entre capital e trabalho. Os gestores "eleitos" logo se tornariam idênticos aos capitalistas tradicionais: a função do capitalista, diz Marx, tende a se separar da função de operário. A gestão operária resultaria em capitalismo; isto é, o capitalismo não seria destruído.

A burocracia bolchevique assume o controle da economia. A ultra-esquerda, ao contrário, quer que as massas façam isso. A ultra-esquerda permanece no campo do leninismo: mais uma vez, dá uma resposta diferente à mesma questão (a gestão da economia). Afirmamos outra questão (a destruição da economia, do capitalismo). O que nós queremos não é a gestão, por mais "democrática" que seja, do capital, mas sua total destruição.

E) O Limite Histórico da Ultra-esquerda

Examinando o problema da "organização" e do conteúdo do socialismo, afirmamos a existência de uma dinâmica revolucionária sob o capitalismo. Gerado pelo capitalismo, o movimento revolucionário assume novas formas em cada situação. O socialismo não é só a gestão da sociedade pelos operários, mas o fim do ciclo histórico do capital. O proletariado não apenas toma o mundo; ele finaliza o movimento do capitalismo e da troca. Eis o que distingue Marx dos pensadores utópicos e reformistas: o socialismo é produzido pela dinâmica objetiva que o capital criou e difunde por todo o planeta. Marx insiste no conteúdo do movimento. Lênin e a ultra-esquerda insistiram nas suas formas: forma de organização, forma de gestão da sociedade, mas esqueceram o conteúdo do movimento revolucionário. Também isso foi um produto histórico. Foi a situação do período que impediu as lutas revolucionárias de terem um conteúdo comunista.

O leninismo exprimiu a impossibilidade da revolução na sua época. O conselhismo exprimiu sua necessidade, mas sem ver exatamente no que sua possibilidade consistia. As idéias de Marx sobre o partido foram abandonadas. Foi o tempo das grandes organizações reformistas, naquela época, dos partidos comunistas (que logo recairiam numa forma de reformismo). O movimento revolucionário não foi suficientemente forte. Por toda parte, na Alemanha, na Itália, na França, na Grã Bretanha, o início dos anos trinta caracterizou-se pelo controle das massas por líderes "operários". Reagindo a esta situação, os ultra-esquerdistas foram tomados pela fobia de se tornarem novos burocratas. Em vez de compreenderem os partidos leninistas como um produto da derrota proletária, eles recusaram qualquer partido, e, como Lênin, deixaram a concepção marxista do partido ficar esquecida. Ignorando o conteúdo do socialismo, todos os movimentos sociais, exceto na Espanha por um curto período, tentaram administrar o capitalismo e não superá-lo. Em tais condições, a ultra-esquerda não podia fazer uma crítica profunda do leninismo. Ela somente podia assumir o ponto de vista oposto, opor outras formas ao leninismo, sem ver o conteúdo da revolução. Isso é compreensível, uma vez que o conteúdo não lhes aparecia claramente. (Devemos, contudo, lembrar que a ultra-esquerda forneceu uma notável crítica da alguns aspectos do capitalismo - como a do sindicalismo e dos partidos "operários").

Essa é a razão de a ultra-esquerda ter substituído o fetichismo leninista do partido e da consciência de classe pelo fetichismo dos conselhos operários. Se, hoje, fazemos a crítica do leninismo e do ultra-esquerdismo é porque o desenvolvimento do capitalismo tornou visível o conteúdo real do movimento revolucionário.

Mas seria equivocado tratar as idéias da ultra-esquerda (temor de criar um partido e a gestão operária)como mera ideologia. Quando essas idéias apareceram, por volta de 1920, expressavam uma luta revolucionária real, e mesmo seus "erros" tiveram um papel positivo e progressivo na luta contra a social-democracia e o leninismo. Seus limites expressavam a atividade de milhões de proletários revolucionários. Mas as coisas mudaram muito desde 1920. Uma nova minoria de revolucionários está em lento processo de formação, como foi revelado pelos acontecimentos de 1968, na França, e outras lutas em diversos países.

Num período revolucionário, as lutas se estendem sem problema. O movimento revolucionário se unifica. A coerência teórica é um objetivo permanente, uma vez que sempre acelera a coordenação dos esforços revolucionários. Os revolucionários nunca hesitaram em agir coletivamente para propagar sua crítica da sociedade atual.

Eles não tentam dizer aos operários o que fazer; mas não deixam de intervir, com o pretexto de que "os operários devem decidir por si mesmos". Pois, por um lado, os operários só decidem fazer o que a situação geral os obriga; e, por outro lado, o movimento revolucionário é uma totalidade orgânica na qual a teoria é um elemento inseparável e indispensável. Os comunistas expressam e defendem os interesses gerais do movimento. Em todas as situações, eles não hesitam em dizer claramente o que está acontecendo e em fazer propostas práticas. Eles fazem parte da luta do proletariado e contribuem para construir o "partido" da revolução comunista.

(julho de 1969)

NOTAS:

[1] A I.C.O. hoje se chama Echanges et Mouvements.

[2] Carta de Marx para Engels, 25 de agosto de 1867.

[3] Paul Mattick, "Valor e Socialismo"

[4] Marx, Grundisse.

[5] Ibid.

[6] Ibid.

[7] Ibid.

[8] Ibid.

[9] Ibid.

[10] Ibid.

[11] Ibid.

[12] Ibid.

[13] Ibid.

[14] Carta de Marx para Kugelmann, 11 de julho de 1868.

[15] Marx, Crítica do Programa de Gotha.

[16] Marx, A Miséria da Filosofia.

[17] O capital, Vol.III, último capítulo.

[18] "A essência da sociedade burguesa consiste precisamente nisso: que a priori não há regulação social consciente da produção. A necessidade racional e natural só se afirmam como uma média, agindo às cegas." (Carta de Marx para Kugelmann, 11 de julho de 1868)

[19] Grundisse.


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