segunda-feira, 27 de agosto de 2012

OITO HIPÓTESES SOBRE O PÓS-FORDISMO




De: Marco Revelli, Le Due Destre, Bollati Boringhieri, Torino 1996.


Em períodos de decadência, como o atual, de pouco servem a rotina intelectual e as pequenas manobras do pensamento. Nesses períodos, vale a pena tentar, de algum modo, refletir sobre a crise em termos radicais. Em nosso caso, tentar pensar a reestruturação produtiva e social em curso, pressupondo que este fim de século - este tumultuoso desenlace do século vinte - não é uma simples "expressão cronológica", nem um reajuste conjuntural dentro da normalidade, mas assume, do principio ao fim, a forma de uma ruptura histórica. De um "salto de paradigma" que, por assim dizer, assinala, como tal, uma descontinuidade profunda em todos os níveis: cultural, social, político. E nos obriga a reconstruir, pela base, modelos organizativos, identidades coletivas, categorias interpretativas, linguagens.

Será possível "pensar politicamente" uma transição tão radical quando, como agora, mal começou? Quando falta inclusive o vocabulário para "nomeá-la"? Creio que sim, mas sob três condições.

A primeira passa pela consciência do risco implícito em uma operação de tal envergadura. Pensar radicalmente o futuro implica uma dose "desproporcional" de experimentalidade, de simulação, ser iconoclastas em certos momentos; um desapego "irresponsável" a respeito das contingências do existente, como se a isso já estivesse habituado num momento em que o antigo conflito ainda não foi resolvido e a partida continua, por assim dizer, jogando-se formalmente (e nunca como agora tão dramaticamente). Como imaginar as hipotéticas linhas de ação do amanhã sem esvaziar de sentido as formas concretas da resistência atual?

A segunda condição passa pela consciência do caráter fragmentário, provisório, sistematicamente autocontraditório das analises a propor. Em um contexto em que o inédito e o banal se entrelaçam de modo inextricável, convivendo um ao lado do outro, cada fragmento de descontinuidade descoberto pode ser novamente enterrado e desmentido por continuidades muito mais fortes, qualquer emergência do novo pode ser questionada por infinitas confirmações de eternos retornos.

E quando, se o que buscamos é confirmação, nem a praxis pode vir em nossa ajuda, faz-se necessário apostar. E apostando, apostar também, desde o momento em que, na mobilidade absoluta do real, é necessário para começar - ainda que somente fosse como opção de método - um ponto fixo, por um ponto de apoio - e esta é a terceira condição para nossa analise: uma perspectiva estrategicamente situada.

I
Segundo penso, a aposta (dupla) é esta: no "afundamento de todos os valores" pode se manter no mínimo um elemento da "velha" leitura da relação marxiana entre estrutura-superestrutura: a opção por continuar buscando, apesar de tudo, aquilo que se chamou a "composição técnica do Capital" em sua articulação com a "composição política de classe", no sentido da atual mutação, no "lugar" de uma analise racional do existente. Também penso que o respeito desse ponto de vista particular - "continuista", não o nego -, nos leva, contudo, a excluir qualquer possibilidade de continuismo político-institucional. Permanece, pois, num marco consolidado, para confirmar, não obstante, a rápida e irreversível dissolução do "nosso mundo' (do contexto em que se constituiu a "política social' do século XX), e a emergência de um novo cenário, no qual a interrelação entre capital, trabalho, Estado e formas organizadas da política e do conflito se dá de um modo inédito. No qual, acima de tudo, parece consumar-se a crise todas as CULTURAS maiores de nosso século: aquela "técnica" do Capital em sua forma "fordista-taylorista", e aquela política do Movimento Operário, em sua acepção "socialista", e do "compromisso social" que ambas culturas estabeleceram entre si.

A hipótese deste trabalho é a seguinte: nos encontramos frente a uma dessas crises que Gramsci definia como "orgânica" (com razão se poderia invocar o espírito do americanismo e fordismo para dar conta da dimensão dos níveis implicados nela). Um transito "epocal", no qual se entrelaçam, na atualidade, o fim de um longo ciclo técnico e organizativo de acumulação do Capital e, ao mesmo tempo, o fim - a ruptura histórica - da "tradição do movimento operário" ( pelo menos em sua "tradição" política mais recente, que remonta, aproximadamente, ao primeiro conflito mundial). Isto é: a dissolução da "forma" que a produção capitalista assumiu em nosso século (fundada na centralidade absorvente da grande fábrica e no desligamento de um domínio de sua racionalidade estratégica sobre toda a retícula social), e o esgotamento da experiência histórica do movimento operário (combinação de partido de massas e de "Estado social", de organização geral e de estatatização).

É significativo que um técnico do capital como Taiichi Ohno (pai da denominada "produção flexível", da fábrica integrada e do espírito Toyota) e André Gorz, intelectual "orgânico" do que sobrou da esquerda européia, coincidam, no fundo, desde pontos de vista contrapostos, na mesma constatação radical: a necessidade de pensar ao revés. Em fazer eco de uma brusca ruptura em relação com os respectivos modelos de referencia, um constatando - do ponto de vista do capital - o fim do modelo produtivo baseado na "produção em massa" e a necessidade de subverter completamente a velha filosofia produtiva fordista-taylorista; o outro constatando - do ponto de vista do movimento operário - a consumação do "fim do socialismo" como "ordem social existente" e como "modelo de sociedade realizável". O primeiro para proclamar o imperativo, por parte da empresa, de assimilar integralmente a subjetividade do trabalho, convertendo-o em um fator diretamente produtivo; o segundo para constatar o eclipse do trabalho como fator constitutivo da subjetividade operária, sua dissolução como elemento básico da identidade coletiva. A leitura paralela de ambos nos diz o quanto, efetivamente e doravante, as capacidades produtivas - determinadas pelas inovações tecnológicas (dos anos setenta e oitenta) e a sucessiva reestruturação organizativa, resumida na fórmula "qualidade total", naquilo que se convencionou chamar de trânsito ao "pós-fordismo" - têm sido modificadas juntamente com as condições gerais da produção capitalista, isto é: seu "paradigma produtivo". E, ao mesmo tempo, até que ponto tudo isto tem transformado radicalmente as condições do conflito social e suas formas políticas.

II
Qual é a natureza efetiva do pós-fordismo? E qual é sua descontinuidade real com relação ao modelo produtivo precedente? Creio que tem uma certa razão aqueles que lêem, na transformação tecnológica e organizativa em curso, uma radicalização do modelo fordista-taylorista. Algumas de suas características de tipo "integrista" e mais opressivas são levadas ao extremo. No modelo da "fábrica integrada", do just in time, na fábrica que funciona a zero stock, sem almoxarifados residuais, com tempos totalmente sincronizados em cada um de seus segmentos, realiza-se, com efeito, o sonho "inacabado" de Henry Ford: a idéia de um fluxo produtivo contínuo e total que abarque todas as fases da produção ao mesmo tempo, que faça palpitar o conjunto do aparato produtivo no mesmo ritmo. Uma idéia que leva às últimas conseqüências o principio de conversão absoluta dos "tempos vivos" da força de trabalho em tempos produtivos, e que acentua, mais do que reduz, o grau de dependência do trabalhador na relação sistêmica do processo produtivo. Idéia que reenvia a uma lógica 'taylorista" - isto é: a submeter - em termos formalizados e pré-definidos, num âmbito de total sincronia entre todas as funções produtivas - setores tradicionalmente "externos" ao "sistema de fábrica" (por exemplo: os empregados em transporte, de unidade produtiva a unidade produtiva, ou o pessoal do sistema logístico). O que dramatiza mais que estimula, enfim, a questão de "domínio" sobre a força de trabalho (o "sistema" é aqui muito mais vulnerável do que o precedente a qualquer "assincronia", por menor que seja). Neste sentido, pode-se falar de uma forma de "intensificação" do velho modelo produtivo e não, certamente, de sua superação.

Isto - especialmente na Itália e mais especificamente na Fiat, onde o caminho a nova filosofia produtiva implica um elevado grau de compromisso - sem menosprezar fortes "resistências" estruturais, com a antiga filosofia (um modelo produtivo que tem sempre forçado o caráter centralista-burocrático do fordismo-taylorismo, uma estrutura hierárquica sem espaço para a autonomia e fundada numa cultura obsessiva do mando e da desconfiança). E ali onde, durante mais de uma década, acreditou-se levar a cabo uma revolução tecnológica radical sem mudar a estrutura organizativa preexistente. Ou seja: permanecendo todos esse elementos de "continuidade". Creio, por outro lado, que também pode-se afirmar que, PELO MENOS EM DOIS ASPECTOS, a nova filosofia produtiva marca uma forte descontinuidade com relação ao modelo precedente.

III
O primeiro aspecto faz referência a relação "fábrica-sociedade". Ou, se se prefere, a relação com o mercado. O fordismo se fundava no domínio absoluto da fábrica sobre a sociedade. Enquanto forma de organização típica da "produção em massa" (do modelo produtivo onde quem produz "sabe" ter à sua disposição um mercado quase ilimitado em que a oferta sempre será inferior à demanda), esta não devia "obedecer" ao ambiente externo, pelo contrario, podia permitir-se "modelá-lo". Definindo tipos de produtos e volumes de produção "autonomamente", exclusivamente baseados nos próprios parâmetros produtivos. A programação da empresa poderia, assim, pensar a sociedade como uma variável dependente, como objeto de programação, segundo a idéia de um fluxo linear que, dentro da direção da fábrica, do coração da produção, descenderia ao longo de todo o ciclo produtivo e daria, finalmente, forma ao mercado, “submetendo-o" à própria racionalidade técnica do mesmo modo como submetia a força de trabalho. Assim funcionava o fordismo: da fábrica para a sociedade, num fluxo de sentido único. A própria cidade fordista, a company town, não era mais que uma extensão da fábrica, seguia seus ritmos, seus horários, assumia seus estilos de vida e suas formas de domínio.

O novo modelo produtivo, por outro lado, deve enfrentar uma situação totalmente diferente: um mercado "maduro" e de limites bem definidos; um mercado "finito", por assim dizer, saturado em seus segmentos fortes, e onde a oferta deve medir-se com a variabilidade de uma demanda cada vez mais seletiva e freqüentemente imprevisível. Assim tem sido nos últimos anos. Anos em que a mundialização do mercado não acarretou, paradoxalmente, uma extensão ilimitada da capacidade de absorção de mercadorias por este, mas pelo contrario, tornou manifesta sua rigidez, a saturação tendencial implícita no seu desenvolvimento (também por causa da manifestação de limites "naturais - ou seja: ecológicos - que prejudicam estruturalmente o "terceiro mundo", a maioria da população mundial, bloqueando seu acesso às formas e aos níveis de consumo do Ocidente). E assim será no futuro. Este novo modelo produtivo deverá enfrentar, cada vez em maior medida, a crise de consumo que já começa a ocorrer atualmente, a "nova desordem" mundial conseqüência da improgramável mobilidade dos mercados, causa real da "derrota histórica" do fordismo e elemento que tem destruído o sonho de uma simples evolução do modelo por via tecnológica. A fábrica deve enfrentar agora uma sociedade que já não absorve tudo que ela produz, que não permite a manobra tradicional de diminuir custos aumentando o volume da produção. Uma sociedade que "resiste" ao domínio da racionalidade instrumental própria da esfera produtiva, que não aceita uma programação linear e obriga a estrutura produtiva a adequar-se ao "capricho" do mercado. E, determinada pelas modificações do "ambiente externo", a "vibrar", por assim dizer, com o mercado, modificando suas atitudes, a combinação de máquinas e homens na esfera produtiva, e mesmo os níveis de produtividade. Já não é a ordem produtiva o que "coloniza" a sociedade, que reduz qualquer âmbito à sua geometria, mas é a desordem social (as volúveis "preferencias do cliente") que irrompe na fábrica, forçando suas estruturas a uma "mobilidade" cada vez maior, a uma capacidade de resposta cada vez mais fluida. Não é Marx quem naufraga aqui, mas Weber e sua idéia de racionalidade instrumental como possibilidade de programação e cálculo, construção de FORMAS regulares ao abrigo das perturbações da subjetividade; não é a crítica do século XIX á fábrica mecanizada que se esgota, mas o absolutismo do século XX, com seu estatuto técnico como pretensa forma universal da racionalidade.

IV
O segundo aspecto mencionado faz referência à relação com a força de trabalho. O taylorismo, como filosofia produtiva, assumia como pressuposto a idéia de uma "resistência" operária estrutural ao emprego de trabalho. Partia da existência de um "segundo mundo" na fábrica, diferente e separado da ordem da empresa, governado pelo seu próprio código de honra e por leis especificas não-escritas, e determinado a escamotear a própria força de trabalho, a retardar as operações, a sobretudo, "ocultar", sua potência produtiva real a hierarquia da fábrica. Para reagir contra isso, devia servir, precisamente, a "ciência do trabalho": para vencer a "preguiça natural" operária; para restituir ao patrão o conhecimento do processo produtivo, acabando com o monopólio do conhecimento sobre os ofícios possuído pelos trabalhadores. A fábrica taylorista era uma estrutura produtiva feroz, despótica, agressiva, porque era "dualista". Porque se baseava na idéia de uma separação e de uma contraposição estrutural entre os principais sujeitos produtivos. A fábrica incorporava, em sua "constituição", o conflito, a relação de forças. Para superá-lo, certamente; para dissolvê-lo na universalidade objetiva da ciência, mas não sem um resíduo irredutível em sua formulação: a alteridade operária dentro do sistema de máquinas era o princípio oculto do taylorismo.

A teoria da "fábrica integrada", em troca, pressupõe, filosoficamente, a idéia de uma estrutura produtiva "monística". De uma comunidade de fábrica unificada e homologada na qual o trabalhador deve consciente e voluntariamente "liberar" a própria inteligência no processo produtivo, conjugando funções executivas com prestações de controle e projeção, identificando os defeitos em tempo real e participando diretamente na redefinição da estrutura do processo produtivo, em relação com as variações da demanda. Entre força de trabalho e direção de empresa deve estabelecer-se uma continuidade cultural, existencial, um sentir comum, que não admita fraturas. Se a fábrica taylorista se fundamentava no "despotismo", esta aspira a "hegemonia". Se aquela usava a força, esta joga com a astúcia. Se aquela tentava dissolver a identidade operária, ou, no mínimo, controlá-la, esta se propõe a muito mais: procura "construir" uma identidade coletiva totalmente nova, enraizada no território da fábrica, coincidente, em seus limites, com o universo da empresa. Aqui não se trata de forçar uma massa "inerte" a fornecer trabalho bruto (energia produtiva). Trata-se, isto sim, de obter dela fidelidade e disponibilidade, e de levar a cabo uma "mobilização total" da força de trabalho que ative suas capacidades intelectuais e seus resíduos de criatividade. Trata-se, pois, de subjugar ao capital a dimensão existencial, subjetiva, da força de trabalho. Assim, também, de fazer do pertencimento à empresa a única subjetividade possível. E, em muitos aspectos, o corolário inevitável do que foi dito anteriormente: se de fato a fábrica deve "vibrar com o mercado", se sua morfologia (a estrutura do processo produtivo, a organização de equipes, as formas da divisão técnica do trabalho) deve modificar-se à cada modificação da demanda, não pode admitir uma força de trabalho "passiva". É imprescindível "politizar empresarialmente" o trabalho diretamente produtivo, exercer "hegemonia" sobre o antigo adversário "de classe".

V
Não creio que o impacto das "novas" características do pós-fordismo possam ser limitadas ao âmbito da fábrica. Como já ocorreu na transição das fases taylorista e fordista, é mais provável que as tensões geradas na esfera produtiva tendam a repercutir sobre todas as relações sociais, abalando equilíbrios consolidados, modificando instituições, estruturas, comportamentos, formas de mediação e conflito.

O primeiro terreno no qual isto se produzirá será - já é perceptível atualmente - o do "mercado de trabalho". Aqui, a questão se põe em termos opostos àqueles do "mercado de mercadorias": passa-se de uma posição de "dependência" da fábrica com respeito a estrutura do mercado de trabalho a uma posição de "domínio". Se no modelo da "produção em massa" o sistema dependia de um mercado de trabalho tendencialmente em situação de "plena ocupação"; se a fábrica fordista devia enfrentar uma oferta de força de trabalho relativamente limitada em sua dimensão quantitativa e, sobretudo, "dada" em suas características profissionais, devendo adaptar os próprios códigos produtivos à "qualidade" da mão-de-obra disponível, agora, no novo modelo, o sistema produtivo deve criar seu próprio mercado de trabalho ideal. Modelar a estrutura da força de trabalho, redefinindo as relações internas e sua estratificação. Incapaz de determinar o mercado de mercadorias, pretende, em compensação, "decidir" quanto ao mercado de trabalho, auxiliado pela atual situação em que a vontade de fazê-lo se exerce, em termos gerais, "depois" da consumação de uma derrota histórica da classe operária. Assim sucedeu no microcosmo da Toyota, em sua origem, onde o novo sistema produtivo se implantou depois de um duríssimo conflito laboral que transformou o sindicato em apêndice da estrutura empresarial. O mesmo esta ocorrendo, agora, a nível internacional. A nova filosofia produtiva é incompatível, em particular, com um mercado de trabalho unificado - plasmado na idéia da universalidade dos direitos sociais - como aquele que se formou na Europa no segundo pós-guerra. Por sua natureza, essa filosofia pressupõe uma estrutura segmentada da força de trabalho e hierarquizada segundo níveis crescentes de fidelidade e obediência.
Pelo menos, pressupõe uma estrutura polarizada, na qual um núcleo relativamente reduzido da classe operária empregada nas produções centrais - qualificada pela pertinência empresarial e com níveis de segurança social elevadíssimos garantidos pela própria empresa -, se contrapõe a um "exército da fortuna" [aspas do tradutor] da força de trabalho "externa" à comunidade da empresa, extremamente móvel, em certos aspectos "nômade" e privada de garantias trabalhistas: homens privados de referencias identitárias, multidão solitária de substitutos eventuais de baixa qualificação, utilizada, sob a lógica da superexploração, não somente em ocupações marginais (como já ocorre, atualmente), mas em segmentos importantes do ciclo produtivo da grande empresa, ombro a ombro com os privilegiados, mas sem seus privilégios.

Um modelo de mercado de trabalho "democrático" tende a passar a um modelo de mercado de trabalho "de casta", estruturado em "corpos separados", cada um deles dotado de um status jurídico diferenciado: "ilhas de trabalho" a serem criadas sobre as ruínas da antiga universalidade. Esse modelo de um novo feudalismo industrial, do qual já se percebem os primeiros sintomas no projeto do governo Dini, é vendida como "medida para sustentar o emprego".

VI
Mas o mercado de trabalho - segmento ainda bastante próximo à esfera da produção - não e a única "instituição social" implicada na revolução produtiva em curso. A "forma-Estado" está destinada a ser afetada por ele. O modelo estatal imperante no século XX - social, do ponto de vista das políticas públicas; keynesiano no plano econômico; nacional, no geopolítico -, se baseava numa forte sinergia com o modelo produtivo fordista. O "compromisso social-democrático" que determinava sua natureza de estado "assistencial", pressupunha uma imagem dualista da estrutura produtiva. A "mediação social", que representava sua "constituição material" reenviava inevitavelmente a uma idéia polarizada do corpo social, a um fundamento classista. Assim, a opção keynesiana focalizava a função estatal na gestão da massa monetária (na produção de renda e sua regulação), pressupondo, desde sempre, a idéia de uma demanda tendencialmente "infinita" do ponto de vista substancial - a lógica da mercadoria -, cujo único limite era a insuficiência dos meios monetários à disposição dos consumidores. Duas características do modelo fordista destinadas a serem questionadas, inclusive com sua parcial superação. E, neste sentido, também parece destinada a entrar em crise a terceira característica do Estado do século XX: seu conteúdo "nacional", obsoleto em muitos aspectos devido aos mais recentes processos da reestruturação capitalista.

A "desterritorialização" dos centros de decisão econômica, como conseqüência da mundialização dos mercados, parece hoje uma tendência consolidada. Assim como parece consolidada a tendência à superação do modelo de "democracia de massas", que se revelou como o tipo ideal de governo no último meio século. Os lugares e as instituições nas quais se definem as linhas mestras de uma economia que só se concebe numa escala planetária são o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, os organismos "técnicos" da Comunidade Econômica Européia, etc. Centros subtraídos ao mecanismo decisional "democrático", concebível, no nível atual da cultura política, no limitado âmbito estruturado em torno do secular processo de formação das identidades nacionais. O resultado é o tendencial vazio "político" da atual "forma-Estado"; o declive do weberiano monopólio do uso legitimo da força e da decisão por parte do Estado-nação e sua transformação: no vértice, em órgão executivo de decisões assumidas em sedes "multinacionais"; na base, desde a "sociedade civil", que tende a se refragmentar em suas identidades originarias. Um processo que, onde a modernização tem ocorrido mais debilmente, menos vinculada ao mercado, vai assumindo a forma de inchaço "étnico". Mas onde, pelo contrario, o contexto é industrialmente avançado, com um mercado plenamente hegemônico com respeito a qualquer outra forma de vínculo social, tende a valorizar centros distintos de estruturação da identidade coletiva, meios mais adequados (mais "modernos") de organização extra-estatal de uma nova esfera pública potencial, começando pela própria empresa, pela estrutura intitucional da unidade produtiva capitalista.

Esses sintomas já foram percebidos, e acredito que se acentuaram: a tradicional divisão do trabalho entre empresa e Estado está entrando em crise. Cada vez mais, a empresa "pós-taylorista" reivindica e se apropria de papéis e funções que anteriormente pertenciam à instituição publica: o de produção de "identidade", em primeiro lugar, fundamental no modelo produtivo japonês (se o que se quer é "mobilizar totalmente" a força de trabalho, faz-se necessário propor a empresa como estrutura de pertencimento decisiva no aspecto da identidade); mas também o fato de assumir uma série de "serviços sociais" essenciais no plano da reprodução da força de trabalho, começando pela assistência sanitária e terminando nas pensões, a formação profissional ou a "garantia" do aluguel. É muito provável que a via em direção a "fábrica integrada", a "empresa total" inscrita no modelo japonês, passe através dessa 'publicidade" da empresa (ou privatização da segurança social). É o que veremos, nos próximos anos, com a multiplicação de fundos empresariais de aposentadorias e pensões, de asilos e outras formas de assistência social, exclusivas e seletivas, reservados à "casta" dos trabalhadores fiéis à empresa, utilizados como instrumentos essenciais de qualquer capital, por menor que seja, para conquistar a hegemonia sobre a força de trabalho. Esta é, precisamente, a essência "política" do pós-fordismo. Partindo desse ponto de vista, as políticas desenvolvidas na Itália de 1992 em diante - da duríssima "manobra Amato", do verão-outono daquele ano, à mais recente reforma das pensões aprovada pelo governo Dini - e que acarretaram um importante redimensionamento do caráter de "sociedade" do Estado, a privatização algo mais do que alguns "pedaços" do capital publico, como inclusive dos critérios de algumas prestações que distinguiam o "Estado assistencial", perdem o aspecto de "provisioriedade" e de ocasionalidade próprios do "estado de emergência", para assumir características de "fase". Não se tratam de medidas preventivas "conjunturais", mas estruturais. Não são apenas andaimes para remendar as brechas abertas no passado, mas alicerces do modelo futuro: um traço característico da "via italiana ao pós-fordismo".

VII
Se, de algum modo, tudo isso é plausível, é preciso concluir agora que boa parte das "formas" políticas assumidas pela esquerda neste século, parecem, senão dissolvidas, sumamente questionadas. Pietro Ingrao, em uma significativa intervenção nessa dura confrontação entre a esquerda e as urgências sociais dos novos tempos, afirmou que "têm sido alcançados os lugares históricos onde se originava a agregação coletiva". Onde se produziam a identidade e a praxis coletiva do movimento operário. E assim é. O movimento operário assumiu como lugares da própria socialização três âmbitos privilegiados: a Fábrica, o Partido de massas e o Sindicato. Os três se encontram fortemente questionados pela atual transição. A fábrica fordista foi - como se tem visto - durante muito tempo um mecanismo extraordinário de reprodução em grande escala da cultura antagonista, em que a serialidade da produção veio recodificada, na fadiga e na opressão, de identidade múltipla até a formação do sujeito coletivo que dominou a cena do conflito social no segundo pós-guerra e que, agora, se converteu no terreno que este se viu forçado a ter que lutar, ante a hegemonia do capital, por migalhas de autonomia individual, enclaves de independência assistencial. Mas também estão os dois instrumentos organizativos tradicionais da ação e da consciência operária: o Partido e o Sindicato, que se constituíram a partir do modelo Estado-nação. E agora, no novo contexto produtivo, quando esse modelo de escala se mostra inadequado por ser demasiado "pequeno" ou por ser demasiado "grande" - insuficiente em suas dimensões para produzir políticas econômicas, excessivo para exercer hegemonia -, tanto o Partido como o Sindicato seguem a mesma sorte que a Fábrica, neutralizados, em sua eficácia, por um capital que tende a "descentralizar" - a reconduzir até mesmo a própria empresa -, no mínimo, duas das prerrogativas que o Estado mantinha até pouco tempo: a sociabilidade e a territorialidade. O Capital que tende a converter-se, de alguma maneira, em Estado, "produzindo", diretamente, assistência e identidade.

VIII
Não acredito que exista uma panacéia que sustente a travessia do deserto das referencias identitárias. Nenhum "projeto orgânico" é suscetível de dotar de capacidade ofensiva a necessidade de resistência. Por muito tempo ainda, temo que nos debateremos entre a defesa de um passado que vai afundando e a busca de uma via que não se mostra. Mesmo assim, estou convencido, dentro de limites razoáveis, de um par de coisas:

A primeira é que, em uma situação como esta, não se pode ficar quieto. Que enquanto o mundo muda debaixo de nossos pés, organizar a resistência não é permanecer imóvel na trincheira. Significa, pelo contrário, buscar saídas. Individuar pontos móveis a partir dos quais reivindicar. "Inventar" novas formas de conflito e de organização, lugares provisórios de agregação, mais adequados à nova articulação fábrica-sociedade-Estado.

A segunda, estreitamente vinculada à primeira, é a resposta ao novo tipo de enfrentamento. A inovação organizativa a experimentar não poderá assumir um só âmbito exclusivo. Não poderá situar-se somente no terreno da fábrica (como ocorreu no ciclo de lutas do final dos anos sessenta e no começo dos anos setenta), nem somente no terreno social, mas deverá atuar num terreno intermediário: no limite entre produção e reprodução. Território fronteiriço que constitui, justamente, o lugar de confluência das linhas mestras da atual reestruturação produtiva. E que é, por sua natureza, um âmbito “desnacionalizado", de raio infinitamente menor do que o da "política nacional", e feito na medida das relações de microcomunidade, nos quais, precisamente, terá de confrontar a hegemonia produtiva, social e existencial do capital.

Definitivamente, se o problema passa hoje por resistir ao poder hegemônico de um capitalismo convertido em totalizante, capaz de usar a gestão do "social" como recurso produtivo; se o que se trata é de combater (e competir) no pouco praticado terreno da constituicão de identidade e naquele tecnicamente escorregadio da gestão da cotidianidade, então os velhos instrumentos organizativos - aqueles que têm dado identidade ao movimento operário do século XX - são hoje insuficientes. Tanto o partido de massas como o sindicato (o primeiro como detentor do monopólio da consciência e o segundo da negociação) assumiam, como condição, o conflito (inscrito na própria estrutura dualista da produção) e a mediação como fim, em um sistema de interesses de soma zero. Trabalhando, o primeiro, para traduzir a mobilização em níveis crescentes de sociabilidade no Estado e, o segundo, em formas limitadas de associabilidade na fábrica (de independência pactuada com respeito à socialização totalizante do capital). Permanecendo ignorada e - numa fase em que a socialidade era sinônimo de estatalidade e a representatividade era garantida per se pelo papel negociador - estranha, a constituição do sujeito coletivo em sua autonomia cotidiana. E hoje a tarefa prioritária parece passar precisamente por ai: pela tentativa de valorizar qualquer elemento de "autonomia"; por enfrentar o projeto hegemônico e, por sua vez, "alienante" do novo modelo industrial, "inventando" circuitos de agregação não mediatizados pela "forma-mercadoria" e, ao mesmo tempo, localizados ali onde o "trabalho" hegemônico opera: no território de uma cotidianidade que questiona, precisamente, os limites entre produção e reprodução, entre fábrica e sociedade.

Formas de cooperação autogeridas segundo critérios solidários, capazes de empregar e educar no e para o autogoverno da vida cotidiana, fora das tradicionais burocracias delegadas; propostas de revalorização dos ofícios e da criatividade funcionando em circuitos não "mercantis", comprometidas com um critério de gratuidade do "fazer", contrapostas à intenção empresarial de valorizar economicamente qualquer forma de criatividade, à mercantilização de qualquer capacidade expressiva; ações positivas, orientadas desde o principio do "faça você mesmo" até a gestão daquelas áreas de sociabilidade em vias de ser abandonadas pelo Estado e reserva tendencial de caça para o capital. Estes são alguns exemplos de um repertório, por hora amplamente insuficiente. Mas sobre os quais vale a pena começar já a trabalhar, e mais ainda numa fase em que se dá, estruturalmente, a possibilidade de uma nova e drástica redução do tempo de trabalho, e, por isso mesmo, a possibilidade de um forte enfrentamento cultural pela hegemonia sobre o tempo social externo à esfera do trabalho organizado.

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